Há quatro anos que a Nuvem Vitória ajuda a adormecer as crianças internadas nos hospitais portugueses. São já 538 os voluntários que cruzam o país a contar histórias, num gesto que, muitas vezes, é um bálsamo para os pais. O DN acompanhou uma noite em que as nuvens embalaram bebés, crianças e adolescentes.
À hora marcada, na entrada principal do Hospital de Santo André (HSA), em Leiria, o segurança abre sorrisos e dá passagem às duas duplas da Associação Nuvem Vitória. Já passa das 20.00 e dali até cruzarem as enfermarias da pediatria ainda há meia hora de preparação, num ritual que Margarida, Patrícia, Mónica e Diana conhecem bem: apanhar o cabelo, vestir a camisola azul-bebé que é “farda” da Nuvem, pôr ao ombro a sacola dos livros e seguir viagem, que se pretende seja até à terra dos sonhos, para os meninos internados.
“Aqui nunca há casos muito graves”, começa por dizer ao DN Ana Paula Carreira, a educadora de infância há nove anos destacada pelo Ministério da Educação no HSA e que desde o verão passado faz a ponte entre a Associação Nuvem Vitória e os serviços hospitalares. Todos os dias cria um grupo no WhatsApp com os voluntários de serviço (sempre quatro) e deixa as informações precisas: número de crianças internadas e porquê. Lembra-se bem do dia em que, no verão passado, o diretor da pediatria, Bilhota Xavier, a chamou para a incumbir dessa missão de coordenar os grupos, antes de o projeto avançar naquele hospital.
Ana Paula fez toda a formação ministrada pela Nuvem Vitória e entusiasmou-se com o projeto. “Aqui em Leiria são mais de 70 pessoas, de várias idades e profissões. Vêm de toda a cidade mas também dos concelhos vizinhos. E, sim, tem sido muito gratificante”, conta ao DN, enquanto abre caminho para chegarmos às 17 camas que nesta noite estão ocupadas por crianças doentes, a maioria bebés de poucos meses, que lutam contra bronquiolites e outras infeções respiratórias. É assim o inverno.
Mas também há adolescentes, agrupadas num quarto, a tratar fraturas várias. Porém, é junto dos mais novos que a Nuvem se concentra mais tempo. Há pais e mães exaustos pelo choro dos pequenos e pelos dias que custam a passar. “A história que nós aqui vimos contar por vezes é tão importante para eles, ninguém imagina”, conta Patrícia Pereira, de 38 anos, que veio de Monte Redondo, uma freguesia do concelho de Leiria. Durante o dia é professora de Português-Inglês, habituada a lidar com os mais novos. Nesta noite faz dupla com Diana Costa, de 31 anos, terapeuta da fala, natural da Batalha. O quarteto fantástico da Nuvem Vitória fica completo com outra dupla: Mónica Brites, de 40 anos, assistente de medicina dentária, e Margarida Ferreira, de 45 anos, cuidadora formal.
Quando entram na pediatria do HSA, pelas 20.30, há de tudo à sua espera: os adolescentes a quem “as histórias ajudam a passar o tempo”, os bebés que se alegram com os livros animados, as crianças que ouvem com atenção as histórias inventadas por escritores vários, como Luísa Ducla Soares, tantas vezes. As histórias são previamente escolhidas em função das crianças internadas. “Hoje, por exemplo, sabemos que há um menino diabético, por isso temos o cuidado de não trazer uma história que fale de doces, por exemplo”, explica Diana. João (nome fictício) e a família estão ainda atordoados com a notícia. A mãe “julgava que ele tinha uma infeção urinária, e, afinal, aos primeiros exames percebeu-se que está diabético”, explica Ana Paula, que nos próximos dias vai contar com este menino entre as suas rotinas. “É um choque, sobretudo para os pais, mas também para os meninos que têm de se habituar a uma nova realidade. A verdade é que cada vez aparecem mais casos, mas a presença das nuvens ajuda muito a atenuar estes momentos, em que os pais estão um pouco perdidos”, conta a educadora. João tem apenas 6 anos e começa agora uma viagem que inclui medir glicemias e administrar insulina, pesar alimentos e comer a horas muito certas. A história aliviou esta primeira noite.
Quatro anos de nuvens nos hospitais
Quando Clara e Luís Silva regressam do jantar, o pequeno Luís, de apenas 6 meses, já segue com o olhar os caracóis de Mónica, ou será os óculos, talvez. Está há vários dias internado com uma bronquiolite. Os pais não se cansam de elogiar aquele momento “em que as nuvens entram”, como se fosse mágico. No mesmo quarto está Vitória, que não é uma nuvem mas parece: 10 meses de menina que fica imóvel a ouvir a música que sai de um dos livros: La Valse d’Amélie.
“Tem sido uma boa experiência”, conclui Patrícia, certa de que “todos os dias são diferentes”. O que mais leva com ela, quando volta a cruzar a porta do hospital, “são os sorrisos das crianças, mas também dos pais. Acho que conseguimos ajudar a ultrapassar momentos menos bons”. Afinal, já era essa a ideia de Fernanda Freitas – que o país conhece como apresentadora da TV – quando em 2016 fundou a associação Nuvem Vitória. Ou melhor, a história começa um pouco antes: “Eu sou contadora de histórias voluntária em ambiente pediátrico há mais de 15 anos. Quando abri a minha empresa, apercebi-me de que os horários pedidos pelos hospitais eram incompatíveis com a minha nova dinâmica empresarial e que o único período de tempo livre de dia… era à noite! Numa tarde, em abril de 2016, e em conversa com o Pedro Dias Marques [vice-presidente da associação], apercebemo-nos da inexistência de respostas para voluntariado à noite em ambiente pediátrico. Juntámos os nossos saberes e decidimos criar a Associação em agosto de 2016″, relata ao DN.
A ideia esteve vários meses “em processo de planificação e implementação – e, claro, dependíamos da aprovação da equipa de pediatria de um hospital”. Muitas reuniões depois, “tivemos autorização para desenvolver um projeto-piloto em novembro de 2016, com uma periodicidade diária (de segunda-feira a sexta-feira), e com implementação no piso 6 do serviço de pediatria do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com uma equipa de 22 voluntários em colaboração direta com os profissionais de saúde, educadoras e auxiliares”, recorda.
Nestes quatro anos, a Nuvem cresceu. Atualmente são 538 voluntários inscritos a atuar por todo o país: Hospital de Braga, Hospital de São João e Joãozinho (Porto), Hospital Santo André (Leiria), Hospital de Vila Franca de Xira, Hospital de Santa Maria (Lisboa), Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão (Cascais), no Hospital Garcia de Orta (Almada) e no Hospital Dr. José de Almeida, de Cascais.
Em cada um deles, a ideia é a mesma: “Estimular o envolvimento dos pais, familiares e cuidadores, na área da leitura e da narração oral, em diferentes contextos, procurando elevar o nível de literacia das populações bem como estreitar os laços familiares e com os cuidadores em geral”, sublinha Fernanda Freitas. Além disso, “permite também a criação de um momento de relaxamento e descontração, durante o angustiante período em que decorre o internamento da criança”. De resto, Fernanda sabe bem do que fala. Ela própria esteve internada num hospital, em criança, e lembra-se de como era importante qualquer momento que a fizesse “evadir-se” dos tratamentos.
Felizes depois da história
Para lá do projeto-piloto – “que nos deu noção mais concreta do impacto que a Nuvem Vitória poderia ter” -, recentemente foi elaborado um estudo, apresentado em setembro de 2019 no World Sleep Summit, em Vancouver, junto das crianças hospitalizadas, de pais/cuidadores e onde foram também auscultados os próprios voluntários. “Os resultados preliminares, numa pequena amostra de pais/cuidadores, indicam que as crianças hospitalizadas, a quem foram lidas histórias de embalar, sentem-se felizes (46,7%) ou muito felizes (40%) após cada sessão de leitura.”
“Além disso, nos dias em que as crianças ouviram histórias, tinham menos resistência em ir dormir, quando comparado com os dias em que não houve leitura de história e com o que acontece em casa.”
Enquanto a Nuvem continua a crescer, Fernanda Freitas destaca “o feedback incrível, através das redes sociais, por parte dos cuidadores que recebem a visita das nuvens”.
Quando deixam a pediatria do HSA, as quatros nuvens de Leiria levam esses sorrisos para casa. Margarida, que durante o dia cuida de uma idosa de 82 anos, por vezes arrisca ler as mesmas histórias durante o dia, atravessando gerações à boleia da nuvem. De todas elas, só Patrícia já teve uma experiência de contar histórias noutro hospital, onde a esperavam casos mais complicados no internamento pediátrico. Foi no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. No Santo André, a esta hora os meninos já deverão ser outros, mas todas as noites a Nuvem volta para os visitar e embalar o sono.
Originalmente publicado em Diário de Notícias