“O nosso mal é o sono”

 

OS DADOS SÃO POUCOS, MAS OS QUE JÁ EXISTEM DIZEM QUE PORTUGAL É UM PAÍS CANSADO. DORMIMOS POUCO E MAL, E CONSUMIMOS MUITOS MEDICAMENTOS PARA COMBATER AS NOITES EM CLARO, AINDA QUE AS INSÓNIAS POSSAM — E DEVAM — SER RESOLVIDAS DE OUTRA FORMA. TAMBÉM A NÍVEL EUROPEU É PRECISO MAIS INFORMAÇÃO. CÁ, A ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DO SONO PROMETE DOIS GRANDES ESTUDOS ATÉ 2021

 

TEXTO TIAGO SOARES INFOGRAFIA LILIANA GONÇALVES

Dorme o suficiente? A pergunta é tão simples quanto o nome do site que a faz, querodormir.pt. Esta plataforma foi criada em 2016 pela Associação Nuvem Vitória em parceria com a Associação Portuguesa do Sono, e pretende ajudar os portugueses a saber se dormem ou não as horas necessárias. O questionário é composto por 14 perguntas bastante simples, e em poucos segundos aconselha o utilizador sobre o seu nível de sonolência, seguindo a Epworth Sleepiness Scale. O teste não serve de diagnóstico nem substitui uma avaliação profissional, mas o site, além de vários artigos sobre o sono e a sua importância, permite pesquisar por médicos especialistas no tema.

A preocupação com a duração e a qualidade do sono tem aumentado nos últimos anos mas, mesmo assim, estudos científicos sobre o tema escasseiam. Joaquim Moita, presidente da Associação Portuguesa do Sono, diz ao Expresso que essa falta de informação estatística a nível nacional e europeu é uma lacuna que deve ser corrigida o quanto antes: no caso português, o objetivo é que nos próximos dois anos — ou seja, até 2021 — sejam realizados “dois grandes estudos”: um sobre o sono dos adultos, outro sobre o das crianças.

Apesar de faltar um panorama geral, um inquérito realizado este ano pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia, conhecido no âmbito do Dia Mundial do Sono a 15 de março, esboça alguns dados preocupantes: quase metade dos inquiridos (46%) dormem menos de seis horas por dia. Além disso, 32% dizem dormir mal, 40% admitem dificuldades em manterem-se acordados durante o dia, e 21% demoram mais de 30 minutos a adormecer. E, se a percentagem de 46% já traça um cenário negro, Joaquim Moita afirma que as pessoas que dormem menos do que seis horas serão certamente “mais de metade” dos portugueses adultos.

 

PORTUGUESES QUE DORMEM MENOS DE 6 HORAS

Em percentagem

46%

 

 

FONTE: SOCIEDADE PORTUGUESA DE PNEUMOLOGIA, 2019

NÚMERO DE HORAS QUE UM ADULTO DEVE DORMIR DIARIAMENTE

Entre os 18 e os 65 anos

7h a 9h

FONTE: ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DO SONO

PORTUGUESES QUE JÁ ADORMECERAM A CONDUZIR

Em percentagem

22%

FONTE: “SLEEPINESS AT THE WHEEL ACROSS EUROPE”, 2015

TEMPO RECOMENDADO PARA A DURAÇÃO DO SONO

De recém-nascidos até aos 25 anos

Para o presidente da APS, estes indicadores mostram uma “má higiene” do sono, e provam que os portugueses têm “uma falta de respeito” pelas horas em que deviam descansar. Seis horas é pouco: uma pessoa entre os 18 e os 65 anos deve dormir, diariamente, sete a nove horas por dia; surgem daí as “famosas oito horas”, tantas vezes recomendadas. As consequências da privação de sono são várias e estão bem documentadas: a norte-americana The National Sleep Foundation diz que um período de 20 horas seguidas sem ir à cama debilita o raciocínio e o tempo de reação de uma pessoa como se esta tivesse bebido uma garrafa de vinho. Dormir seis horas por noite durante duas semanas — como pelo menos metade dos portugueses parece fazer — é o equivalente a duas diretas consecutivas; e insistir neste tipo de padrão aumenta as hipóteses de uma morte antecipada em 13%. A nível europeu também são praticamente inexistentes os estudos científicos a debruçar-se sobre as horas que passámos a dormir, mas os dados parecem mostrar que Portugal descansa menos do que a maioria dos outros países europeus. Países do norte da Europa — Dinamarca, Suécia e Noruega, sobretudo — adiantaram-se na importância que dão ao sono, seguindo o exemplo norte-americano do início deste século.

 

Um trabalho publicado pela revista “The Economist” no ano passado espelha uma clara relação entre a riqueza de um país e as horas passadas na cama a dormir. No topo da tabela, com mais de sete horas e meia de sono todos os dias, estão países como a Nova Zelândia, a Finlândia e a Holanda, todos com um PIB per capita de pelo menos 40 mil euros. Este valor é idêntico ao da população japonesa, mas por terras nipónicas é onde se dorme menos horas em todo o mundo: em média, pouco mais do que seis. Aliás, um estudo de 2016 concluiu que a exaustão custa ao Japão cerca de 3% do seu PIB, por baixar violentamente a produtividade.

 

 

Joaquim Moita deixa claro que o relevo que começa a ser dado ao sono aparece, também, para combater os excessos de “um homem vinte e quatro horas, que nunca para, que tem de estar sistematicamente ao telefone, disponível, ligado.” Um caminho que começou com a invenção da energia elétrica. Thomas Edison, inventor da lâmpada, nunca quis apagar as luzes: considerava dormir uma perda de tempo, e defendia a pés juntos a privação do sono. Em 1914, disse que não havia razão para os homens irem para a cama. Joaquim Moita sinaliza como o trabalho de Edison “permitiu o trabalho por turnos — 30% do trabalho mundial, sendo que 10% são

turnos noturnos”, algo bastante nocivo e que impede a criação de rotinas e hábitos de repouso. A ciência sabe hoje que Edison, apesar de um inventor mais do que capaz,

estava errado neste campo: dormir pouco e trabalhar muito não é produtivo.

 

SONO SOBRE RODAS

E se conduzir, durma. Estar atrás do volante com sono é um enorme risco para a segurança pública na Europa. A conclusão é do estudo “Sleepiness at the Wheel across Europe”, publicado em 2015 e coordenado pela investigadora portuguesa Marta Gonçalves, especialista em Medicina do Sono. O estudo aponta que, durante os dois anos de pesquisa, 17% dos inquiridos tinham adormecido a conduzir, e em 7% dos casos disseram já ter tido um acidente na estrada graças a uma ou várias noites mal dormidas. Em Portugal, 22,3% de condutores responderam que já tinham adormecido ao volante, destes 1,7% já tinham estado envolvidos em acidentes por causa disso. Aliás, o já referido inquérito da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (2018) concluiu que 40% dos portugueses tinha tido pelo menos um episódio de sonolência severa atrás do volante.

As causas apontadas pelos condutores são várias, mas têm sempre a falta de descanso como denominador comum: 42,5% das pessoas declararam que, no momento do acidente, tinham adormecido porque tinham dormido mal na noite anterior, mas 34% disseram que dormem mal com regularidade; 15% atribuem também a culpa ao facto de trabalharem por turnos. Além disso, “outra causa potencial para uma condução sonolenta foi identificada no uso de medicação em mais de 8% dos participantes envolvidos nos acidentes”. O estudo concluiu ainda que “as probabilidades de adormecer ao volante são significativamente mais elevadas nas pessoas mais jovens quando comparadas com aqueles acima de 70 anos”.

 

 

CRIANÇAS E IDOSOS

A Associação Portuguesa do Sono e a Sociedade Portuguesa de Pediatria recomendam que o tempo de sono diário vá diminuindo com o aumento da idade da criança; assim, só a partir dos 18 anos o tempo recomendado é de entre sete a nove horas. Isto porque o sono das crianças é diferente do dos adultos; nos mais pequenos“existe uma grande inter-variabilidade”, sendo normal um recém-nascido, por exemplo, “dormir nove ou 22 horas. Felizes são os pais cujas crianças dormem 22.

Isso não tem mal nenhum. A criança está a dormir mas a aprender ao mesmo tempo”. Quanto às crianças no início da adolescência, nos 12/13 anos, também é normal precisarem de mais horas de sono, com “a tendência particular de adormecerem tardiamente: em vez de ser às 22h ou 23h, será por volta da meia noite, uma da manhã. Chama-se a isto atraso de fase, ou seja, o atraso na passagem do estado de vigília para o sono”. Atualmente, é um processo saudável totalmente à mercê dos ecrãs dos aparelhos tecnológicos na hora de dormir, portadores de uma luz que, explica Joaquim Moita, “inibe completamente a produção da melatonina”, a hormona

do sono.

 

OS PORTUGUESES TÊM “UMA FALTA DE RESPEITO” PELAS HORAS EM QUE DEVIAM DESCANSAR. SEIS HORAS É POUCO: UMA PESSOA ENTRE OS 18 E OS 65 ANOS DEVE DORMIR SETE A NOVE HORAS POR DIA

 

Dados do portal online Statista indicam que 10% das crianças portuguesas dormiram pelo menos 11 horas por noite entre 2015 e 2017; 72% descansaram durante 10 horas, e praticamente todas as crianças portuguesas (99%) não dormiam menos de nove horas. Estes indicadores são idênticos nos vários países europeus abordados, sendo que na Bulgária e na Roménia cerca de 15% das crianças não chegavam a dormir nove horas por noite. A APS refere o início madrugador das aulas em Portugal como um entrave a que as crianças tenham um sono pleno.

Um estudo intitulado “Comportamentos de Saúde dos Jovens Universitários Portugueses”, com dados referentes a 2016 e levado a cabo pela Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, concluiu que os estudantes do ensino superior dormem em média sete horas durante a semana e cerca de 8h30 ao fim de semana; e, apesar de só 6,3% dos inquiridos terem admitido nunca ou quase nunca dormir bem, 79% dizem dormir pouco — pelo menos às vezes — e 78% terem dificuldades em acordar de manhã.

No que diz respeito à população idosa, a Sociedade Portuguesa de Pneumologia assinala o aumento dos distúrbios respiratórios do sono com a idade, “considerando-se que pode atingir 30-80% da população com idade superior a 65 anos”. Patologias deste tipo aliadas a outros problemas do sono — como as insónias — são “muitas vezes confundidas com demência”. E nesta faixa etária, avisa a APS, a medicação — nomeadamente as benzodiazepinas — pode ter consequências indesejáveis.

 

MAUS SONHOS

As insónias não são as únicas doenças do sono; a roncopatia — ressonar — é tida como um dos principais sintomas da apneia, e a narcolepsia afeta aqueles que, durante o dia, estão constantemente sonolentos. Joaquim Moita diz que problemas como estes têm dois métodos possíveis: a medicação e o tratamento cognitivocomportamental.

 

Em Portugal, os dois são problemáticos. Quanto à primeira abordagem — resolver as insónias com recurso a medicação — Portugal tem números preocupantes. Um estudo do Infarmed de 2017 assinala que somos o país da OCDE onde mais ansiolíticos, hipnóticos e sedativos são consumidos. Em 2016, 1,9 milhões de portugueses compraram pelo menos uma embalagem destes medicamentos, sobretudo mulheres (70%) entre os 55 e os 79 anos. A utilização é mais prevalente no norte e centro do país — a dose diária situa-se nos 94 e 97 por cada mil habitantes — do que na região de Lisboa (63). Este uso elevado de medicamentos na esperança de uma boa noite de sono — livre de stresse e ansiedade — é explicado pelo seu “preço baixo”, diz Joaquim Moita, e pode trazer consequências “terríveis”, por provocarem sedação e habituação: “Passado algum tempo a pessoa aumenta a dose, depois duplica… os efeitos são nefastos.”

Já o tratamento cognitivo-comportamental — no fundo perceber porque é que não dormimos — está pouco desenvolvido em Portugal: “Há poucos psicólogos ou psiquiatras a fazerem esse tipo de abordagem, e é algo extremamente eficaz que não envolve medicação como as benzodiazepinas.” Tratar desta forma as insónias e outros distúrbios do sono não só sensibiliza o paciente para alguns comportamentos a ter e a evitar, como vai ao fundo das causas dos distúrbios — e por isso só pode ser levado a cabo por um profissional competente, um psicólogo ou um médico especialista na área. Em Portugal, ao contrário de outros países, ainda não existe a especialidade de Medicina do Sono. No entanto, a dr. Ana Allen Gomes, investigadora no Centro de Investigação em Neuropsicologia e Intervenção Cognitivo-Comportamental e membro da direção da APS, destaca ao Expresso que, na faculdade de Psicologia de Coimbra, “estamos a dar há dois anos terapia cognitiva comportamental da insónia especificamente” no âmbito de um mestrado na área. Dessa forma, “a próxima geração de psicólogos já vai poder dar uma melhor resposta” ao problema. Joaquim Moita também sublinha que, apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer na defesa de um sono descansado, os portugueses nunca deram tanta importância ao sono, e a atenção dada aos seus distúrbios “tem aumentado gradualmente”. Por exemplo, “somos solicitados para ir falar a muitas escolas, e as iniciativas que temos feito têm tido muito êxito”. Para que, no futuro, possamos todos dormir melhor.

Originalmente publicado em Expresso

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