Crianças. Uma terapia chamada histórias de embalar

“Nas alas pediátricas de vários hospitais por todo o país, a Associação Nuvem Vitória leva todas as noites histórias de embalar às crianças internadas. A ideia é transportá-las para longe dali, conseguindo com isso serená-las. Os voluntários – conhecidos por “nuvens” – gostam de ser descritos como “serena-dores”. O i acompanhou uma visita ao Hospital de Santa Maria

Sofia (nome fictício) estava internada e precisava de ventilação externa para respirar. Certa noite, não queria mesmo colocar a máscara. Uma “nuvem” foi então contar-lhe uma história de embalar, mas a menina já estava semiembalada por causa da falta de oxigénio. Para escolher o melhor livro, a nuvem perguntou à mãe do que gostava a menina – purpurinas, princesas e golfinhos, informou a mãe. A nuvem não tinha nenhum livro que correspondesse à descrição e decidiu inventar uma história. “Era uma vez uma princesa que vivia no fundo do mar, que tinha um vestido enorme, cor de rosa, cheio de purpurinas. Passeava pelo mar e, um dia, um golfinho viu-a e ficou apaixonado”, começou a nuvem. Nada fazia prever a reação de Sofia: exclamou um profundo “ah” de espanto, o que provocou um aumento da ventilação, levando-a a inspirar mais oxigénio. As interjeições de entusiasmo foram aumentando à medida que a história avançava; ao mesmo tempo, a máquina que fazia o controlo da respiração da menina apitava insistentemente. Assustada, uma enfermeira acabou por ir ao quarto da criança, mas encontrou-a melhor do que a tinha deixado.

O episódio aconteceu durante o projeto-piloto da Associação Nuvem Vitória, que decorreu no sexto piso da Unidade de Pediatria Geral do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 2016. A nuvem – nome dado os voluntários que vão de quarto em quarto contar histórias às crianças internadas –, por sua vez, era a presidente, Fernanda Freitas. “Aí percebemos que uma história podia de facto ajudar, apesar de não sermos terapeutas e de a nossa função não ser essa. A nossa função é serenar, gostamos de ser considerados ‘serena-dores’”, conta ao i numa noite de segunda-feira, ao percorrer os corredores da mesma unidade do hospital.

Enquanto isso, duas nuvens, Francisco e Susana, de 28 e 30 anos, percorrem os quartos de todas as crianças do piso, desde bebés a adolescentes. “Todas as noites de segunda a sexta vimos ler duas horas de histórias aos meninos. Além desta dupla aqui no sexto piso, está mais uma no oitavo e outras duas no nono, porque é um piso muito grande. E também temos nuvens no São João, em Vila Franca de Xira e em Alcoitão, e, a partir de sexta-feira, em Braga”, explica a responsável do projeto, que hoje está aqui como coordenadora – todas as noites há uma em cada hospital. Os livros, tal como qualquer despesa associada ao voluntariado, assegura Fernanda, são custeados pela associação: “Não temos falta de financiamento, felizmente. Recentemente, o Francisco e outra colega, da consultora CGI, levaram o nosso projeto a um programa que a empresa tem chamado Dream Connectors, e ganhou a nível mundial.” Além do financiamento, que foi aplicado na formação dos voluntários e no desenvolvimento de um livro em braille que permita aos pais cegos contarem uma história aos seus filhos, a vitória permitiu ainda algo de que há muito a associação precisava: uma plataforma para gerir as escalas dos atuais 400 voluntários, que até aqui eram geridas num ficheiro excel, que está a ser desenvolvida pela consultora.

Perto das 21h, as nuvens Susana e Francisco saem do quarto do segundo ouvinte da noite, uma das três crianças que por estes dias estão em isolamento. “Correu bem”, comenta Francisco à saída. “As crianças em isolamento têm de ouvir as histórias primeiro do que as outras, para não transportarmos nada doutras crianças que possa afetá-las”, explica ao i o consultor, que se tornou voluntário da Nuvem Vitória logo em 2016, quando estava à procura de um projeto de voluntariado e a associação lhe chegou aos ouvidos. “O primordial da nossa atividade é não interromper nada e não estragar o ambiente. E tem sido espetacular. Depois de um dia de trabalho cansativo pensar que ainda vou para um hospital contar histórias para crianças, fico a pensar que queria mesmo era um sofá, mas a verdade é que sempre que venho para cá saio com um sentimento de recompensa enorme e sem ter nada em troca”, afirma. Susana, que é educadora de infância e já tinha o gosto pelas histórias antes de se tornar nuvem, concorda: “Entrei no projeto por influência de uma outra nuvem, minha colega de trabalho, que me contagiou. É um mundo diferente daquele com que nós trabalhamos todos os dias e acho que foi isso que me fascinou na Nuvem, perceber que trabalho com crianças que, no fundo, são sortudas, porque não estão neste contexto.”

Originalmente publicado em Jornal i

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